quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Vista de Ararit. Gravura em Metal. 2002-4




por Eduardo Veras

Ano passado a revista Isto É decidiu eleger uma série de grandes personalidades brasileiras. Vieram pedir o meu voto na área de arquitetura e artes plásticas. Eu deveria apontar 30 nomes, e o critério era absolutamente pessoal, o que eu achasse importante, o que eu achasse que merecia ser lembrado, louvado, apreciado. Como entendo pouco de arquitetura, fiquei nos óbvios: Lina Bo, Lúcio Costa, Niemeyer. Nas artes, onde tenho a estupenda pretensão de manjar alguma coisa, sugeri alguns nomes por tudo e em tudo obrigatórios: Volpi, Iberê, Grassmann, Oiticica, Mira Schendel. Mas, como a lista era minha e o critério era pessoal, indiquei também nomes que certamente só iriam figurar nessa minha lista e na de nenhum dos outros votantes (eram uns 20). Escolhi artistas cujos trabalhos, entre tudo quanto eu tinha visto ao longo de sete anos como repórter nessa área, haviam me marcado profundamente e que eu apontaria sem titubear como alguns dos grandes criadores brasileiros contemporâneos. Eram três nomes nessa “categoria”: Manuel da Costa, Jailton Moreira e Anico Herskovits.

Lembrei disso agora, quando o Leandro me pediu um texto para acompanhar a exposição “virtual” da Anico. Essa introdução toda era pra dizer que eu considero a Anico um dos grandes artistas brasileiros. É o meu palpite, e o leitor faça o favor de me desculpar. Me pediram uma opinião. Primeiro, a Istoé. Depois, o Leandro. Estou me manifestando. É a primeira vez que faço um texto público na primeira pessoa. Não se trata, pois, de um texto jornalístico tradicional e não haverá aqui qualquer remota tentativa de isenção.

Devo confessar, antes de tudo, que Anico é minha amiga (e o amigo, dizia Nelson Rodrigues, é o grande acontecimento. O resto é paisagem). Mas, antes de ser minha amiga, Anico foi minha professora. Por dois anos, estudei xilogravura com ela. Também fiz aulas de desenho. Foram sessões e sessões, semana após semana, desenhando uma mesma semente. E como eu aprendi com aquilo. Desenhava, desenhava, desenhava. Anico ia só alcançando material, contando alguma coisa, falando de algum filme, de muitos livros, das viagens maravilhosas que ela fez, dos trabalhos de outros artistas, das suas admirações, Hokusai, Dürer, Goeldi. No final da aula, ela espalhava todos os desenhos pelo chão. Olhava um por um com carinho, com cuidado, com atenção.

Era inclemente nas críticas, mas sempre, invariavelmente, estimulante. No fim, não me tornei um desenhista, talvez não deva me orgulhar muito daqueles desenhos, mas lembro do prazer enorme das aulas, a delícia que era ficar desenhando, uma, duas, três, até quatro horas, apenas com uma pausa breve para o suco de maracujá que a Lucia vinha trazer.

Antes disso ainda, antes da Anico ter ficado minha amiga e antes ainda das aulas, eu já admirava o seu trabalho. Lembro vivamente do impacto da primeira visão de umas gravuras suas bem pequenas, muito sutis e delicadas, em que ela reproduzia uma garça na água, um cachorro dormindo, uma gata se espreguiçando. Eu poderia dissertar sobre essas e outras obras suas mais ambiciosas e igualmente fascinantes, como o projeto do Circo ou o livro do Pantanal. Mas já sei que não vou conseguir explicar porque admiro tanto esses trabalhos e, a priori, desisto da empreitada.

Pra fechar, vou apenas mencionar a ética profunda, o respeito pelo trabalho, a autenticidade que movem a criação da Anico. Às vezes, desanimada, ela vem falar pra mim como se tentasse convencer a si mesma:

“Esse negócio de gravura não dá mais. Ninguém gosta, ninguém se interessa. A gente tem um trabalho enorme, e depois não querem nem ver.”

E ela diz isso meio cabisbaixa, dando de ombros. Mas no encontro seguinte já vem mostrar toda faceira uma nova gravura que acabou de fazer. É uma flor, uma paisagem que ela viu em Israel, um gato que ela tinha. Para sorte nossa, ela não vai desistir nunca. Acho que vai desenhar sempre.

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